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Ilustração: Antonio Ventura |
O vento passa pelo meu corpo e agita as folhas
da pequena árvore. Estou na América do Sul de frente ao Atlântico. Vem dos
canais um cheiro forte de peixes e moluscos e o mar traz a meus pés suas
vítimas e seus despojos. Creio que hoje ela não poderá vir ao encontro e que eu
não poderei afundar minha cara no sol que habita seu corpo. Aceito o verde que
canta no mar porque não sei realmente o que fazer de suas vítimas. Praia
Grande: no fim da Avenida. De repente, enfrento o mar mais fundo, porque nele
eu vejo a imagem primitiva de meu sonho. Do sonho mais profundo que tenho medo.
Mas creio que hoje ela não poderá vir ao encontro. O sol contorna o mundo e nem
parece que é a Terra em seu movimento de rotação. Milhares de crianças,
mulheres, e homens de todas as espécies, moças, virgens e semi-virgens, povoam
os limites da praia, esta terra de ninguém. A tarde continua serena e o mar em
seu interminável ofício. Hoje ela voltará para São Paulo e sinto uma dor
antecipada de tudo que fomos ontem. Contudo meu coração está sereno. A boca
enche-se de areias que a gente mastiga, as crianças crescem seus cabelos. Nus:
cairemos na água e no sal. Nus: conheceremos os peixes, os anfíbios, as aves
aquáticas e os animais rastejantes que há milhares de anos abordaram as terras.
Nus: caminharemos ainda sob este sol estrangeiro. Nus: nos vestiremos de algas
marinhas. Nus: mastigaremos nossos dentes, dilaceraremos nossas mãos, nosso
corpo. Nus: esperaremos ainda que os peixes saiam das águas. Nus –
completamente nus sairemos desta praia, destas águas, como quem sai de uma
catástrofe!
Nunca,
mulher alguma me fitou com os olhos cheios de sol, mas creio que hoje ela não
poderá vir ao encontro. Mas uma alegria toma conta de minha alma gentil,
principalmente porque estou na América do Sul, de frente ao Atlântico. Se ela
ainda chegar, faremos amor entre arbustos, entre folhagem úmida, entre lodo e
musgos, entre algas, entre catástrofes. Entre o amor maior, entre a origem e
entre as maldições, não seremos culpados, simplesmente os mais belos e
trágicos, porque ele guarda em seu coração nossos sonhos mais profundos. Por
milhares de anos ele invadirá apenas seus limites. Continua a vir dos canais um
cheiro forte. O dia assassinado escurece no fim da avenida e num minuto será
noite. Não serei eu quem tocará a trombeta do apocalípse. Apenas sei que ainda
hoje ela tocará meus ombros e terei a certeza absoluta de que passarei por cima
dos peixes.
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