domingo, 31 de agosto de 2014

O GUARDADOR DE ABISMOS

Poema que dá nome ao livro "O guardador de abismos"

O GUARDADOR DE ABISMOS

 Me chamo Antonio, tenho 21 anos, um jornal nas mãos. Estou entre as estrelas e a última notícia. São 183.960 horas de viagem aproximadamente. Mas é mentira: garanto que venho de mais longe. Hoje, de repente, me descubro pelas ruas, vestido de branco e encantador de serpentes. Deve ser, pois, noite e também outono: há muito tempo deixei o Egito. É mentira, não era o Egito, mas garanto que aquilo era um deserto, tão árido, tão quente e tão frio como as ruas de minha cidade. Mas a moça da loja de discos nunca compreenderia.
    Há 183.960 horas, aproximadamente, eu nasci aqui, nesta cidade positivamente fantástica. É uma cidade progressista, sem dúvida alguma. Todos os seus habitantes são razoáveis, embora tenham os pés muito colados ao chão e a mania de criarem hábitos.
    Hoje, fui até a loja de discos ouvir música, mesmo sabendo que há tantas cores e símbolos pelas ruas. A verdade é que eu vivi 21 anos para me encontrar.

    Olho a rua comprida, pois cresci e a cidade também. Hoje, olhei-me no espelho do quarto e me achei velho. Em verdade, as coisas já nascem velhas. Nossos olhos estão molhados, mas já é bem pouco ter dois olhos. Os prédios estão em construção, os fordes atravessam as esquinas, os homens passam atrás das mulheres e de dinheiro e ninguém para me apertar as mãos. Todos têm pressa para chegar a algum lugar, mas ninguém chega a parte alguma. Na cidade, não existe desordem, apenas alguns casos de polícia, o que é muito natural.
    Estou nesta esquina, vestido de branco (hoje me dei por isto) e encantador de serpentes. Mas a moça da loja de discos nunca compreenderia, o que me é indiferente. Hoje lhe comprei uma rosa de penas que um nortista passou vendendo. Ela disse: — Que linda! Vou pôr perto de meu violão ou em cima de meu piano — Cretina! Tive vontade de esganá-la, enforcá-la com o arame e raptá-la em um forde. Mas, para mim, é indiferente. Positivamente, é muito importante ter um violão e um piano.
    Lá fora passavam os carros. Então, ela disse que sou bom. Eu sorri: ela era mesmo cretina. Em verdade, eu sou um sujeito bom, incapaz de liquidar um inseto, apesar de ter possibilidade de pôr fogo na cidade ou de armar a terceira guerra mundial.
    Às vezes fico comovido até às lágrimas com a morte de um cão. Mas o que me enternece muito é o vento, coisa que pode parecer imbecil aos olhos dos outros. Antes que me entregue ao abismo total, preciso acertar uma dívida com o vento. Às vezes tenho raiva, mas logo volto a ser simples e razoável como os demais.
    — Que horas tem, faz favor? — pergunto a um senhor algo apressado, porque gosto de interromper o itinerário dos outros. Ele me diz rapidamente a hora, enquanto olho a rua comprida, cheia de cores, de fome e de sede. Na verdade, não quero saber de horas, pois sei que é noite e isto basta. A noite me fascina, guardo comigo todos os seus abismos. Agora vou permanecer no meio da rua, parar as máquinas e pedir humildemente para que todos se conheçam: fico no meio da rua, imóvel, até que um carro me surpreende:
    — Sai da rua, fresco!
    Eu devia ter coragem, mas saltei fora. Perco, assim, a oportunidade de ser livre. De repente, acho que sou mesmo um fresco. Fresco, não: talvez triste; mas nem triste, apenas sozinho entre a multidão e o forde galaxie.
    É demais andar por estas ruas tão andadas. Mas é noite e isto basta. Mentira, em verdade, ser noite não basta a ninguém, tampouco para a minha bola de angústia e meu desvario metafísico. Em mim só não é metafísica minha fome e frio. Ninguém deveria ser metafísico, mas somos, o que é ruim. De resto, guardo abismos de meus 21 anos, de minhas mãos nervosas pelas ruas de minha cidade — realmente fantástica. Nos dedos e unhas não há resquícios de sujeira: minhas mãos guardam segredos, mas não as apartarei de mim. De vez ou outra, tornam-se estranhas, individualizadas: tomam decisões fantásticas, agressivas. Certo é que nunca as poria a serviço dos edifícios em construção, elas só servem para escrever e nem sempre são felizes neste duro ofício.
    Sinto frio e ainda é outono! Deve ser o vento. Nele existe uma certa crueldade e fascínio. Alguma coisa vem com ele, flameja e dança como um presságio. Nós não pereceremos de câncer. O câncer é o próprio tempo. Mas ainda é outono.
    — Não me crucifiquem por estas ruas, porque elas são demasiado frias, eu disse a ela.
    — Por que são frias? — me perguntou.
    — Porque são frias, simplesmente.
    — Não é não!
    — É claro que sim — eu afirmava.
    — Não é não, tem outro significado.
    Ela sempre achava que as coisas têm outro significado. Mas é tudo mentira e nos iludimos que nosso frio e nossos olhos molhados são verdade. Mas ela queria casar, o que me tornou indiferente. Eu me despedi, nem triste, nem alegre. Ou melhor, minto: um pouco mais triste por causa do vento. Então meu amor ficou nas bancas de revistas, enquanto eu levantava as saias das mulheres.
    Estou livre, com um jornal nas mãos, embora com um gosto amargo na boca — sem nenhum compromisso. Dou três voltas pela praça e não há ninguém para me barrar a passagem.
    — Ei, Taninha!
    Eu quase topo com a Tânia. Ela também há muito tempo abandonou o Egito, pelo menos lá onde tristes mulheres ainda esperam por nós. Tem o nariz árabe igual ao meu, mas bonito — eu gosto. Minhas mãos tocam as dela, quase num encontro de origens.
    — Ei, Antonio! — ela exclama e depois acrescenta: ...eu estava com muita saudade de você.
    — Não seja cretina, Taninha.
    Digo isto com vontade de lhe dar uns tapas e abraçá-la desesperadamente.
    — É verdade! — diz.
    Ela afirma que é sempre verdade. Depois, ela pergunta se eu tenho escrito muito. Eu lhe respondo, ainda com muita vontade de lhe dar uns tapas e abraçá-la desesperadamente:
    — Há muito tempo deixamos o Egito...
    Ela entende os meus símbolos, porque é bem razoável. Então eu digo para ela que ele virá.
    — Quem?
    — O TEMPO, respondo. — ...será o tempo das areias e o canto da ferrugem — acrescento.
    — Que jornal é esse? (o jornal que tenho nas mãos).
    — A Folha. Traz a última notícia, mas não tem importância. Então eu explico a ela que me chamaram para uma guerra a que não fui porque tenho muito sono. Passei aproximadamente 61.320 horas dormindo. Mais de um terço de minha vida, pois também dormia entre a televisão, o espelho e a cama. Quero explicar a ela também por que me perdi em abismos, mas não tem importância. Como sou apenas um entre os 250 mil estrangeiros de minha progressista cidade, mesmo se eu morresse agora, atropelado no meio da rua, não teria importância.
    A cidade está condenada ao abismo e nós estamos condenados a esta ideia intransponível — incomunicados, não tocaremos as estrelas. Existe um espaço menos de um segundo que nos separa, mas que já é o bastante. Estamos enjaulados dentro de nosso próprio ventre. Se eu fosse criança, hoje sairia correndo, treparia nas árvores, daria piruetas, faria caretas para as pessoas, ou então abraçaria a todos que estão na rua, nos edifícios, desesperadamente, muito desesperadamente.
    Muitos buscam riquezas no mais recôndito da infância, mas eu odeio minha infância cheia de festas, cheia de pores de sol, de amanheceres.
    Agora estou diante do cinema e guardo abismos: só isto me é diferente. Mas quase acredito que seja mentira. Nesse preciso momento estou me engravidando demais de segredos, de fascinação, de movimento, de gestos. Preciso parar, porque vou dar à luz qualquer coisa, qualquer feto estranho.
    Preciso ficar imóvel e fechar meus olhos molhados.
    Pressinto que vou vomitar uma bola que está sufocando minha garganta, mas não vomito nada, é angústia. Sinto frio, ainda é outono e sei que é bem noite, agora.
    Avisto e reconheço a Ilsa, apesar de estar um pouco gorda, calça comprida, apertada, uma bolsinha na mão.
    A Ilsa é uma prostitutazinha. Eu a conheci intimamente, há dois anos, num apartamento. Ela deve ter, pois, 140.160 horas de viagem aproximadamente. Vou topar e dançar com ela em pleno deserto, entre o Saara e o Egito.
    — Ei, Ilsa? Vai bem?
    — Não te abarca não.
    Isso me deprime demais e eu preciso sair do deserto. Então eu quero gritar. Esta legião não salvará o mundo, mas insisto. Ela apressa o passo e entra num restaurante de esquina. Aí hesito. Ela pede um copo de leite e bolachas. Está fazendo frio, um frio terrível, quase psicológico. Então, entro no restaurante e insisto:
    — Ei, quero falar com você!
    — Você não acha que está enchendo? Não te abarca não.
    Isso me deprime demais, preciso sair deste deserto. Então quero gritar, mas a voz sai quase sumida:
    — Ora, vá pro inferno, sua vagabunda, porca...
    Saio do restaurante deprimido como no dia em que deixei o Egito. Então a bola de angústia sobe mais, sufocando minha garganta, sufocando as ruas, sufocando a cidade morta, fria, de homens adormecidos.
    Meu corpo está cheio de cosmos e agora quero cantar minha miséria humana; cantarei sozinho, porque estou livre — absolutamente livre — sem nenhum compromisso, ou a mínima identificação com os edifícios, a avenida, com as máquinas ou com o amor e o ódio dos homens. Preciso ter coragem. A cidade está vazia, não há ninguém em parte alguma. Todos dormem em sua aparente liberdade, sem ter aonde ir.
    Sinto uma vertigem de liberdade absoluta, vou sair correndo pela cidade vazia, morta.
    Vou acabar comigo e acertar definitivamente minha dívida com o vento e tocar as estrelas.
    É apenas uma questão de coragem.
    Mas sou tomado de um desespero soturno, cruel; um pânico doentio. Então, percebo que estou arrasado, porque choro de vergonha, por não ter coragem de me matar.
































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