Poema que dá nome ao livro "O guardador de abismos"
O GUARDADOR DE ABISMOS
Me chamo Antonio, tenho 21
anos, um jornal nas mãos. Estou entre as estrelas e a última notícia. São
183.960 horas de viagem aproximadamente. Mas é mentira: garanto que venho de
mais longe. Hoje, de repente, me descubro pelas ruas, vestido de branco e
encantador de serpentes. Deve ser, pois, noite e também outono: há muito tempo
deixei o Egito. É mentira, não era o Egito, mas garanto que aquilo era um
deserto, tão árido, tão quente e tão frio como as ruas de minha cidade. Mas a
moça da loja de discos nunca compreenderia.
Há 183.960 horas, aproximadamente, eu
nasci aqui, nesta cidade positivamente fantástica. É uma cidade progressista,
sem dúvida alguma. Todos os seus habitantes são razoáveis, embora tenham os pés
muito colados ao chão e a mania de criarem hábitos.
Hoje,
fui até a loja de discos ouvir música, mesmo sabendo que há tantas cores e
símbolos pelas ruas. A verdade é que eu vivi 21 anos para me encontrar.
Olho
a rua comprida, pois cresci e a cidade também. Hoje, olhei-me no espelho do
quarto e me achei velho. Em verdade, as coisas já nascem velhas. Nossos olhos
estão molhados, mas já é bem pouco ter dois olhos. Os prédios estão em
construção, os fordes atravessam as esquinas, os homens passam atrás das
mulheres e de dinheiro e ninguém para me apertar as mãos. Todos têm pressa para
chegar a algum lugar, mas ninguém chega a parte alguma. Na cidade, não existe
desordem, apenas alguns casos de polícia, o que é muito natural.
Estou
nesta esquina, vestido de branco (hoje me dei por isto) e encantador de
serpentes. Mas a moça da loja de discos nunca compreenderia, o que me é indiferente.
Hoje lhe comprei uma rosa de penas que um nortista passou vendendo. Ela disse:
— Que linda! Vou pôr perto de meu violão ou em cima de meu piano — Cretina!
Tive vontade de esganá-la, enforcá-la com o arame e raptá-la em um forde. Mas,
para mim, é indiferente. Positivamente, é muito importante ter um violão e um
piano.
Lá
fora passavam os carros. Então, ela disse que sou bom. Eu sorri: ela era mesmo
cretina. Em verdade, eu sou um sujeito bom, incapaz de liquidar um inseto,
apesar de ter possibilidade de pôr fogo na cidade ou de armar a terceira guerra
mundial.
Às
vezes fico comovido até às lágrimas com a morte de um cão. Mas o que me
enternece muito é o vento, coisa que pode parecer imbecil aos olhos dos outros.
Antes que me entregue ao abismo total, preciso acertar uma dívida com o vento.
Às vezes tenho raiva, mas logo volto a ser simples e razoável como os demais.
—
Que horas tem, faz favor? — pergunto a um senhor algo apressado, porque gosto
de interromper o itinerário dos outros. Ele me diz rapidamente a hora, enquanto
olho a rua comprida, cheia de cores, de fome e de sede. Na verdade, não quero
saber de horas, pois sei que é noite e isto basta. A noite me fascina, guardo
comigo todos os seus abismos. Agora vou permanecer no meio da rua, parar as
máquinas e pedir humildemente para que todos se conheçam: fico no meio da rua,
imóvel, até que um carro me surpreende:
—
Sai da rua, fresco!
Eu
devia ter coragem, mas saltei fora. Perco, assim, a oportunidade de ser livre.
De repente, acho que sou mesmo um fresco. Fresco, não: talvez triste; mas nem
triste, apenas sozinho entre a multidão e o forde galaxie.
É
demais andar por estas ruas tão andadas. Mas é noite e isto basta. Mentira, em
verdade, ser noite não basta a ninguém, tampouco para a minha bola de angústia
e meu desvario metafísico. Em mim só não é metafísica minha fome e frio.
Ninguém deveria ser metafísico, mas somos, o que é ruim. De resto, guardo abismos
de meus 21 anos, de minhas mãos nervosas pelas ruas de minha cidade — realmente
fantástica. Nos dedos e unhas não há resquícios de sujeira: minhas mãos guardam
segredos, mas não as apartarei de mim. De vez ou outra, tornam-se estranhas,
individualizadas: tomam decisões fantásticas, agressivas. Certo é que nunca as
poria a serviço dos edifícios em construção, elas só servem para escrever e nem
sempre são felizes neste duro ofício.
Sinto
frio e ainda é outono! Deve ser o vento. Nele existe uma certa crueldade e
fascínio. Alguma coisa vem com ele, flameja e dança como um presságio. Nós não
pereceremos de câncer. O câncer é o próprio tempo. Mas ainda é outono.
—
Não me crucifiquem por estas ruas, porque elas são demasiado frias, eu disse a
ela.
—
Por que são frias? — me perguntou.
— Porque são frias,
simplesmente.
— Não é não!
— É claro que sim —
eu afirmava.
— Não é não, tem
outro significado.
Ela
sempre achava que as coisas têm outro significado. Mas é tudo mentira e nos iludimos
que nosso frio e nossos olhos molhados são verdade. Mas ela queria casar, o que
me tornou indiferente. Eu me despedi, nem triste, nem alegre. Ou melhor, minto:
um pouco mais triste por causa do vento. Então meu amor ficou nas bancas de
revistas, enquanto eu levantava as saias das mulheres.
Estou
livre, com um jornal nas mãos, embora com um gosto amargo na boca — sem nenhum
compromisso. Dou três voltas pela praça e não há ninguém para me barrar a
passagem.
—
Ei, Taninha!
Eu quase topo com a
Tânia. Ela também há muito tempo abandonou o Egito, pelo menos lá onde tristes
mulheres ainda esperam por nós. Tem o nariz árabe igual ao meu, mas bonito — eu
gosto. Minhas mãos tocam as dela, quase num encontro de origens.
—
Ei, Antonio! — ela exclama e depois acrescenta: ...eu estava com muita saudade
de você.
— Não seja cretina,
Taninha.
Digo
isto com vontade de lhe dar uns tapas e abraçá-la desesperadamente.
— É verdade! — diz.
Ela
afirma que é sempre verdade. Depois, ela pergunta se eu tenho escrito muito. Eu
lhe respondo, ainda com muita vontade de lhe dar uns tapas e abraçá-la
desesperadamente:
—
Há muito tempo deixamos o Egito...
Ela entende os meus
símbolos, porque é bem razoável. Então eu digo para ela que ele virá.
—
Quem?
— O TEMPO,
respondo. — ...será o tempo das areias e o canto da ferrugem — acrescento.
— Que jornal é
esse? (o jornal que tenho nas mãos).
—
A Folha. Traz a última notícia, mas não tem importância. Então eu explico a ela
que me chamaram para uma guerra a que não fui porque tenho muito sono. Passei
aproximadamente 61.320 horas dormindo. Mais de um terço de minha vida, pois
também dormia entre a televisão, o espelho e a cama. Quero explicar a ela
também por que me perdi em abismos, mas não tem importância. Como sou apenas um
entre os 250 mil estrangeiros de minha progressista cidade, mesmo se eu
morresse agora, atropelado no meio da rua, não teria importância.
A
cidade está condenada ao abismo e nós estamos condenados a esta ideia
intransponível — incomunicados, não tocaremos as estrelas. Existe um espaço
menos de um segundo que nos separa, mas que já é o bastante. Estamos enjaulados
dentro de nosso próprio ventre. Se eu fosse criança, hoje sairia correndo,
treparia nas árvores, daria piruetas, faria caretas para as pessoas, ou então
abraçaria a todos que estão na rua, nos edifícios, desesperadamente, muito
desesperadamente.
Muitos
buscam riquezas no mais recôndito da infância, mas eu odeio minha infância
cheia de festas, cheia de pores de sol, de amanheceres.
Agora
estou diante do cinema e guardo abismos: só isto me é diferente. Mas quase
acredito que seja mentira. Nesse preciso momento estou me engravidando demais
de segredos, de fascinação, de movimento, de gestos. Preciso parar, porque vou
dar à luz qualquer coisa, qualquer feto estranho.
Preciso
ficar imóvel e fechar meus olhos molhados.
Pressinto
que vou vomitar uma bola que está sufocando minha garganta, mas não vomito
nada, é angústia. Sinto frio, ainda é outono e sei que é bem noite, agora.
Avisto
e reconheço a Ilsa, apesar de estar um pouco gorda, calça comprida, apertada,
uma bolsinha na mão.
A
Ilsa é uma prostitutazinha. Eu a conheci intimamente, há dois anos, num
apartamento. Ela deve ter, pois, 140.160 horas de viagem aproximadamente. Vou
topar e dançar com ela em pleno deserto, entre o Saara e o Egito.
—
Ei, Ilsa? Vai bem?
— Não te abarca
não.
Isso
me deprime demais e eu preciso sair do deserto. Então eu quero gritar. Esta
legião não salvará o mundo, mas insisto. Ela apressa o passo e entra num
restaurante de esquina. Aí hesito. Ela pede um copo de leite e bolachas. Está
fazendo frio, um frio terrível, quase psicológico. Então, entro no restaurante e
insisto:
—
Ei, quero falar com você!
— Você não acha que
está enchendo? Não te abarca não.
Isso
me deprime demais, preciso sair deste deserto. Então quero gritar, mas a voz
sai quase sumida:
— Ora, vá pro
inferno, sua vagabunda, porca...
Saio do restaurante
deprimido como no dia em que deixei o Egito. Então a bola de angústia sobe mais,
sufocando minha garganta, sufocando as ruas, sufocando a cidade morta, fria, de
homens adormecidos.
Meu
corpo está cheio de cosmos e agora quero cantar minha miséria humana; cantarei
sozinho, porque estou livre — absolutamente livre — sem nenhum compromisso, ou
a mínima identificação com os edifícios, a avenida, com as máquinas ou com o
amor e o ódio dos homens. Preciso ter coragem. A cidade está vazia, não há
ninguém em parte alguma. Todos dormem em sua aparente liberdade, sem ter aonde
ir.
Sinto
uma vertigem de liberdade absoluta, vou sair correndo pela cidade vazia, morta.
Vou acabar comigo e
acertar definitivamente minha dívida com o vento e tocar as estrelas.
É
apenas uma questão de coragem.
Mas sou tomado de
um desespero soturno, cruel; um pânico doentio. Então, percebo que estou arrasado,
porque choro de vergonha, por não ter coragem de me matar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe aqui o seu comentário ou mensagem para o autor.