O GUARDADOR ANTONIO VENTURA
Por Carlos Nejar
da Academia Brasileira de Letras.
Não foi a palavra que amadureceu Antonio Ventura, foi ele
que amadureceu na palavra. Pois de seu livro de estreia, O catador de palavras,
para este que tomou o nome de O guardador de abismos, há um processo de visão
da realidade que mudou, tornou-se mais dura, lógica e implacável, ainda que o
poeta seja o mesmo menino. Mas é um menino entremeado entre o desespero e a
dor. “Menino atrás dos pássaros e borboletas amarelas.”
E Antonio Ventura não é um poeta a mais, entre tantos. Mas o
criador que é lido, na medida em que lê o mundo. E inventar é ver por dentro do
verso. E sua obra repete, porque inventa. Pensa imaginando.
De catador de palavras, passou ao ofício de guardador de
abismos. O primeiro movimento era de fora para dentro, agora é de dentro para
fora. Antes plantou, agora aprofunda e depura o que plantou. Afirma num
fulgurante texto, um dos mais belos do livro:
“Ainda hoje passarei por cima dos peixes”. O poeta, aqui
pesca, molhando os pés dos signos. Nada é fácil, já que “o destino da nuvem é
ser livre dentro de seus limites”. E o limite da nuvem é o voo. E o do voo, a leveza
da palavra, a suficiente inocência de a arrebatar da lei da gravidade. Amar é
isso.
Antonio Ventura, portanto, não escreve ao pé das letras, por
não se acomodar, escreve ao pé do espírito, por antes escrever ao pé do abismo.
E esse abismo pode ser a constatação da morte, o horror da “fera que nos leva
para o sol, nos fere”, verificando que a queda nos surpreende, “a queda de
Troia”. Ou pode ser precipício a explosão da vida e do amor. Aliás, nos poemas
dedicados à Débora, a companheira, a sua “bela”, erguem-se momentos primorosos,
ciente de que “o vento só entende as coisas do vento”, como o amor só entende
as coisas do amor. Ou então o alto instante em que refere: “a minha primeira namorada,
pai, foi uma estrela”. Essa junção do terrestre e constelar no afeto, reafirma
a condição de estrela, do abismo e a condição de abismo, das coisas elementares
tal o amor, a noite, o dia, a manhã e o vento. “Volto, eu volto para pôr o
vento em ordem”.
Porque é do poeta organizar o universo, conforme o sonho.
Fazendo que até o sonho seja universo. E o universo, sonho. Todavia, matar o
Minotauro, através do mistério da poesia, no labirinto do verbo, é empresa de
matar a morte. No entanto, “a estrutura da bolha de sabão”, que traz à baila o
conto de Lygia Fagundes Telles, trata da própria estrutura do poema em sua
fragilidade e espessa grandeza. Ocorrendo outra alusão ainda ao texto como
“animal iluminado”, animal que nasce do fulgor. “Ó eternidade! És uma folha
amarela que dança, e cai no paraíso de sol e pássaros” .
Antonio Ventura dialoga, num catálogo de afinidades eletivas,
com Borges, Lygia Fagundes Telles, Mário Chamie, João Cabral, Clarice
Lispector... por estar vinculado a uma tradição. Ao revelá-los, se revela; ao
dizer deles, fala de si. E é curioso como este livro se apropria do que
denomino “prosopoema”, (outros chamam de “prosa poética”), que se vai urdindo numa
prosa encantada, onde a noção de verso se enfuna, junto ao veleiro de
metáforas, sob o ritmo e a linguagem que se impõe, liberta, soberana.
Antonio Ventura, ao guardar no cofre dos símbolos, o abismo
que somos, não só relata a nossa transitoriedade, como utiliza os instrumentos
capazes de durar. Assegura Octavio Paz: “A poesia se ouve com os ouvidos mas se
vê com o entendimento. Suas imagens são criaturas anfíbias: são ideias e são
formas, são sons e são silêncio”. (A outra voz, editora Siciliano, pág.143, São
Paulo, 1990). E o texto de Ventura sabe ver, escutando, sabe sentir, pensando, com
rico arsenal de imagens que, se não sofrem “a educação pela pedra” cabralina,
ou “a educação dos sentidos”, de Haroldo de Campos, padece a educação pelo
abismo, que se desenha na magia e na oralidade.
Vibrando como austero canto de consciência da morte. Com a
serenidade de quem testemunha serem “felizes (as gaivotas) porque não sabem que
morrem”. Exacerbado ou não, ignorado ou inocente, o ato de morrer é causa ou
fim do abismo, onde a imaginação é língua que não se cala e nem pode jamais desamparar
o possível amor.
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