quinta-feira, 10 de abril de 2014

O GUARDADOR DE ABISMOS FOI PREFACIADO PELO IMORTAL CARLOS NEJAR

O GUARDADOR ANTONIO VENTURA

Por Carlos Nejar
da Academia Brasileira de Letras.

Não foi a palavra que amadureceu Antonio Ventura, foi ele que amadureceu na palavra. Pois de seu livro de estreia, O catador de palavras, para este que tomou o nome de O guardador de abismos, há um processo de visão da realidade que mudou, tornou-se mais dura, lógica e implacável, ainda que o poeta seja o mesmo menino. Mas é um menino entremeado entre o desespero e a dor. “Menino atrás dos pássaros e borboletas amarelas.”

E Antonio Ventura não é um poeta a mais, entre tantos. Mas o criador que é lido, na medida em que lê o mundo. E inventar é ver por dentro do verso. E sua obra repete, porque inventa. Pensa imaginando.

De catador de palavras, passou ao ofício de guardador de abismos. O primeiro movimento era de fora para dentro, agora é de dentro para fora. Antes plantou, agora aprofunda e depura o que plantou. Afirma num fulgurante texto, um dos mais belos do livro:
“Ainda hoje passarei por cima dos peixes”. O poeta, aqui pesca, molhando os pés dos signos. Nada é fácil, já que “o destino da nuvem é ser livre dentro de seus limites”. E o limite da nuvem é o voo. E o do voo, a leveza da palavra, a suficiente inocência de a arrebatar da lei da gravidade. Amar é isso.

Antonio Ventura, portanto, não escreve ao pé das letras, por não se acomodar, escreve ao pé do espírito, por antes escrever ao pé do abismo. E esse abismo pode ser a constatação da morte, o horror da “fera que nos leva para o sol, nos fere”, verificando que a queda nos surpreende, “a queda de Troia”. Ou pode ser precipício a explosão da vida e do amor. Aliás, nos poemas dedicados à Débora, a companheira, a sua “bela”, erguem-se momentos primorosos, ciente de que “o vento só entende as coisas do vento”, como o amor só entende as coisas do amor. Ou então o alto instante em que refere: “a minha primeira namorada, pai, foi uma estrela”. Essa junção do terrestre e constelar no afeto, reafirma a condição de estrela, do abismo e a condição de abismo, das coisas elementares tal o amor, a noite, o dia, a manhã e o vento. “Volto, eu volto para pôr o vento em ordem”.

Porque é do poeta organizar o universo, conforme o sonho. Fazendo que até o sonho seja universo. E o universo, sonho. Todavia, matar o Minotauro, através do mistério da poesia, no labirinto do verbo, é empresa de matar a morte. No entanto, “a estrutura da bolha de sabão”, que traz à baila o conto de Lygia Fagundes Telles, trata da própria estrutura do poema em sua fragilidade e espessa grandeza. Ocorrendo outra alusão ainda ao texto como “animal iluminado”, animal que nasce do fulgor. “Ó eternidade! És uma folha amarela que dança, e cai no paraíso de sol e pássaros” .

Antonio Ventura dialoga, num catálogo de afinidades eletivas, com Borges, Lygia Fagundes Telles, Mário Chamie, João Cabral, Clarice Lispector... por estar vinculado a uma tradição. Ao revelá-los, se revela; ao dizer deles, fala de si. E é curioso como este livro se apropria do que denomino “prosopoema”, (outros chamam de “prosa poética”), que se vai urdindo numa prosa encantada, onde a noção de verso se enfuna, junto ao veleiro de metáforas, sob o ritmo e a linguagem que se impõe, liberta, soberana.

Antonio Ventura, ao guardar no cofre dos símbolos, o abismo que somos, não só relata a nossa transitoriedade, como utiliza os instrumentos capazes de durar. Assegura Octavio Paz: “A poesia se ouve com os ouvidos mas se vê com o entendimento. Suas imagens são criaturas anfíbias: são ideias e são formas, são sons e são silêncio”. (A outra voz, editora Siciliano, pág.143, São Paulo, 1990). E o texto de Ventura sabe ver, escutando, sabe sentir, pensando, com rico arsenal de imagens que, se não sofrem “a educação pela pedra” cabralina, ou “a educação dos sentidos”, de Haroldo de Campos, padece a educação pelo abismo, que se desenha na magia e na oralidade.

Vibrando como austero canto de consciência da morte. Com a serenidade de quem testemunha serem “felizes (as gaivotas) porque não sabem que morrem”. Exacerbado ou não, ignorado ou inocente, o ato de morrer é causa ou fim do abismo, onde a imaginação é língua que não se cala e nem pode jamais desamparar o possível amor.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe aqui o seu comentário ou mensagem para o autor.