segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

A VIDA SECRETA DOS GABIRUS



A VIDA SECRETA DOS GABIRUS (2014) é o mais novo romance da safra profética do Imortal Carlos Nejar.

Carlos Nejar saiu de sua formidável condição de Poeta para a inexorável posição de Taumaturgo, operando com obras miraculosas sobre a natureza humana, a redefinir o tempo passado, presente e futuro; a mostrar visões do eterno, através dos longos passos dos sonhos; a desafiar o medo dos homens ante a voracidade do amor, que é o alongamento mais sublime dos ventos interiores.

A VIDA SECRETA DOS GABIRUS é um relato vivo sobre a força da palavra e a sua importância nas divagações do real. Será que somos ratos? Será que somos mal-acabados pelo egoísmo de nossa dúbia personalidade? Além dos dramas existenciais, não seremos ao fim de tudo, somente loucos?

Os romances de Carlos Nejar são sempre líricos e iluminados, dando-lhe a maestria no encantamento e na divinização das palavras. O embate entre o bem e mal encontra-se incorporado no bravo discurso de A VIDA SECRETA DOS GABIRUS. Chegará o dia em que os gabirus deixarão de ser ratos para serem plenos homens? Só o amor avisa e consente... Só o amor de Deus sobrevive à luz.


Do Livro das Vidências, aprendemos com Longinus, um profeta tornado personagem na ficção de Carlos Nejar, a magia e a confabulação de nossa parca matéria, afeita ao delírio e às ambições inerentes aos nossos sonos tormentosos:

- O que não se vê dentro da luz é o que está nos vendo.
- Só temos a dizer o que a palavra nos diz.
- Sonho é o que fugiu do pensamento.
- O coração nunca fala sozinho.
- Tudo tem momento de explodir: até o amor.
- Amor tem luz própria.
- Só o divino termina no divino.
- O gabiru é o letárgico estágio entre o animal e o homem.
- O sono é às vezes a fundura de Deus.
- A poesia é o desamparo da razão.
- O talento é ocultável. O gênio não se esconde.
- Perder a loucura é perder o fogo divino da infância.
- A dor já vem de haver nascido.
- Saudade é um punhado de dor dentro da luz.
- A vocação é espera que enverdeceu.
- A demasia do poder é a demasia do engano.
- O sonho é quando a alma voa para fora do corpo.
- Todos os  que morrem se tornam bons de repente.
- O que é capaz de sonhar não enlouquece.
- Calar é entender os vivos.
- Coragem é o que não anda com os pés, mas com os olhos e a idade.
- Gênio é o que inventa um tempo que nunca mais vai perder.
- A memória para durar carece de ter boca, dentes, olhos, ouvidos e coração.
- Quando se envelhece, a alma vai crescendo e o corpo diminui.
- A inveja dorme acordada.
- Veloz é o que caminha no espírito.
- Deus tem véspera e chegada.
- A espécie dos homens e dos animais é tão sedenta que tende a exterminar-se entre si.
- Os olhos ficaram velhos de tanto ver.
- Os gabirus desplumam o gênero humano.
- Tem que haver também tentação para o bem.
- O tempo se dilata de sofrer.
- Cresci de não morrer mais.
- Quanto mais luz, menos mal.
- A alma corre tanto que deixa vida no caminho.
- Filosofar é pegar o tempo pelas abas.
- Imaginar é olhar com os sonhos.
- Não somos iguais na dor. Só na alegria.
- A morte soletra os vermes.
- Homero ficou cego de tanta luz.
- Gênio é o que tem todos em si e é nenhum.
- Um grande livro é uma grande alma.
- Não adiamos Deus.
- A santidade é o desequilíbrio das estrelas.
- O poeta é o que também tem os olhos atrás da cabeça.
- O verdadeiro poeta tem a memória da espécie.
- O poder se cola à cara.
- A infância tem memória de elefante.
- A política é a sereníssima ciência do porão.
- O poeta é espécie quase extinta.
- Louco é o que não consegue disfarçar que está louco.
- A loucura é o raciocínio de Deus.
- Os poetas não sabem nada mas adivinham tudo.
- Só a inocência engana o sábio.
- Amar é inventar palavras.
- Com a noite não se brinca.
- O romance não é uma categoria, é uma imaginação poética.
- A dor tem ganidos de animal.
- O poeta é um louco que sempre volta à tona.
- Quem dorme já está morrendo.
- Morrer é mudar a árvore de sombra.
- O céu deve ter muito da infância.
- Viver é estar com Deus.
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A VIDA SECRETA DOS GABIRUS (2014)
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(Uzias ainda preso na palavra, noutra parte da aldeia, com garranchos iguais a dentes, escreveu este libelo de gabiru, deixado por um cúmplice na porta de Pompílio)
"Para mim, caça é alimento. Não me diverte! Selvagem, homem, és, mais do que eu. Vê as ruínas que deixas nas cidades bombardeadas. E ainda de ferir te vanglorias com a técnica na guerra. Selvagem no comércio e se não tens argumentos, inventas. E a ti próprio, o que nunca foste. E se tua maldade se distingue, quero a minha: agressora. E se tua malícia é tão bondosa, a minha te devora. Tesouro não espero, nem aspiro a nada, salvo o vínculo (minha voraz fraternidade) e os dentes, os dentes na vítima. Já cresci em grilhões, vesti-me de engodos, convenceram-me a dissimular. Arranquei-me, em vez da voz, grunhidos porque apenas agarro o grito. Nem morada achei em ti, homem, mas tocas, covos, grutas, como força cega. E enchi de vazio, o vácuo de ser o que não sou. Um bicho apenas, rato soez, sob arcadas e as pontes, em canais ou às vezes lá nos sótãos sossegados. Tudo o que fiz e tenho é inútil por minha natureza que elimina a outra e vou tirando qual leproso esta epiderme se solvendo. Sou espetáculo e caço os demais seres, por caçar-me desesperado. Grotesco, frio, como encher o cântaro de animal com alma? Insignificante ao meu pai e a todos, sou besta que se preza, ó angélico humano! Como animal, debalde sacrifico o pelo e as garras nos penedos, ante um Deus que não compreendo, não me aguarda, nem me assenta em sua tenda. Sou viscoso e nojento, falta-me amor que sobra ao desespero. A energia mais me atrai que a inteligência. E a carne mais que hipóteses de sombras e doutrinas ou antiquadas matemáticas. Achas que isso é puro? E o valor arbitrário com que, homem, equilibras dádivas e males. Também irás à cova, como eu, talvez solene, também tens fome e sede, também fazes amor tão, ou mais lúbrico, lascivo, com ares sutis, discretos. Também matas e te mostras amigo. Trais com o mesmo braço que, ao traído, alentas. Recusas o instinto e eu te recuso! Queres dar-me remorsos, culpas e os não acato. Quimera ou embuste somos - tu e eu. Tentarás esmagar-me em ti e eu te irei morder de fúrias, doenças, guinchar aos teus ouvidos delicados. Se és cego, também sou; nem sabes onde em tua lucidez. E é desvairada no gênio e aplaudida entre os medíocres, bem- acomodada. Mas é a mediocridade a única que cresce, aperfeiçoada. Minha solidão não é refém da tua. Mas jogo infinito de infortúnios. E fui comprometido e minha infância enterrou-se com os sarcófagos. Sou deserto, grotesco, tantas vezes desproporcionado, tantas vezes risível pela cauda. E se levas livros, nem por isso são reais as doutrinas e tampouco alcançam diplomar-te na animalidade mais viril, sem pôr a cabeça entre as razões, mancas, titubeantes, vendedoras, de trabucos horizontes e poentes. Prefiro as minhas quatro patas às tuas duas, bem mais onipotentes. Vales o que um russo, amigo de adolescência, afirmava, sarcástico, que os humanos 'eram como fuzis carregados por trás'. Nós, gabirus, somos carregados por todos os lados, até pelos calcanhares das patas. Então, de onde vem a tua empáfia? A não ser que estejam trocados os fuzis e os calcanhares - o que não creio. Ou talvez me 'engane pelos calcanhares ' (expressão que, soube, teria escapulido de alguém, que não recordo, ao expirar). E vós ainda falais em calcanhares dos nobres princípios, ou calcanhares da alma? E prevejo que me execrarás como Voltaire ( não podes negar-me certa erudição originada dos livros que comi), cujo cadáver não foi aceito em nenhum cemitério da capital de seu país, encontrando a melhor maneira de me enterrares: ali, no ar. Então sou fragmento do céu ou de um solo muito mais misericordioso. Quero chafurdar, onde não me dás garantia de existir. E entre ti e mim, não há pacto. Não há pacto! - repito. E ' o que conheces sobre o que é bom nesta vida, homem, por todos os dias de tua vaidade, que gastas como sombra? Por quem dirás o que será depois de ti, debaixo do sol?'. Por quem declararás? Caridoso sou com todos os dentes, podes crer! E crerás, se és culpado por desertares do concerto entre ratos e humanos, tão próximos. Não te queixas de nós, porém de ti mesmo, pois não te emendas da orgulhosa obstinação. Atraiçoaste a memória dos nossos antepassados e isso te atormentará por teres ido contra ela. E se não  retornares a gabiru (paradoxalmente, brotou-lhe esta expressão que desafinou em seu discurso com sua aparência deformada), hás de ser o monstro que tu próprio geraste. E a comunidade está abandonada à sina que escolheste. É nada menos que Píndaro, insigne espécime de tua raça (roí, guloso, Os hinos triunfais, que ele escreveu), que declara: "Quão propenso é ao engano, o ignorante espírito dos homens. '"
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(Carlos Nejar é gaúcho de Porto Alegre, nascido em 1939)
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(Resposta a Uzias)
Indagando como Uzias retirou tantas palavras de dentro da jaula da palavra, onde se achava, Pompílio contestou, em mensagem escrita à mão: "És o que não discerne. E do homem, nada tens, nem olhos, corpo. Alma de ratos! Não podemos seguir ao pé da letra, mas ao pé do espírito: o que não sabes. E o que anda em espírito, não afunda o pé. Como a luz a caminho sobre a água. O espírito reconhece o peso que não é seu e o desliga, como a natureza mais reconhecível que as papoulas. Ninguém prende com os pés a alma. 'Vos apoiais em débil ramo, porque, embora ratos ainda não cessaste de amar um homem.' És tão soberbo, escuta de novo Píndaro: 'Vossa vida está limitada à de uma árvore.' E o teu nome é raça nas cinzas do futuro. Quando a humanidade for extinta. E o futuro te fala: não o queres ouvir. E se o futuro for calamidade, por que sobreviver na terra, quando Deus nos leva junto? A escória só na escória se enternece. "
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Relatório do percurso para o Humano
Com a comida, a palavra circulou pela alma do povo. E palavras foram postas sobre as pupilas, para que vissem e entendessem mais. E palavras postas sobre a boca, para que aprendessem velozmente, comendo os vocábulos como pão e o pão igual às sementes. E elas invadiam o coração, o estômago, os rins, o sangue mesclado e doentio, o sangue inimigo e violado, o soturno sangue de um relógio que se extraviara entre um remendo e outro, o ódio cujo caule fere o corpo, o amor vegetal e animal, amor de ser vivente, amor de líquen, trigo, amor de ser geral pelos países e não haver fronteiras, este amor interminado, limpo de fuligem, de que o amante e o amado não têm nome, apenas contentamento informe, entregue às açucenas. Amor de povo a povo, amor de Deus. E ser toda a palavra até o fim, a glória de homem sem a trégua aos ratos dos pântanos, os ratos que aos milhões corroem esta Veneza, debaixo, nos porões, no fundamento de madeira insone. Matar os ratos todos que no homem ameaçam transgredir, ou roer o próximo, dissimular, trair, dizer-se amigo, para que em mostrança de uma abraço corroa os ossos de uma lágrima, a lágrima em seu navio sem cais, o esconderijo do menino que sabe que na escola até o rio principia a soletrar nosso alfabeto. A palavra que não seja só pedra, também lembrança e ombro. Nas minas de carvão role a palavra com seu carro de fundas soledades, as aves do relâmpago nas rodas e as rodas da palavra para os astros. Para que o homem seja infância e não perca nunca, nem que morra. Porque o que morre com a palavra vive, ressuscita dos mortos, não acaba de uma palavra à outra o trem, o trem, as estações de malas gaguejantes, as estações da alma. E é mais nômade que o vento sul ou leste, esta palavra. E que se ensine a jamais civilizada, selvagem paz, atravessando a guerra como as guelras de um tubarão bifronte. Atravessando palavras para o chão e a morada de famílias do homem. A palavra elementar do sol, às sílabas do riacho. A palavra saída lá do fundo de Deus. Então o povo mudará seu nome para fundar-se humano. E isso basta. Bastará? Os que era, gabirus, foram mudando a pele, sem os malfeitores dentes triturantes e a boca, barca mínima. E o céu da boca, o céu do céu. E as palavras eternas.
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Nada se mexe quando o Mar se mexe, quando o Marechal Oceano se atravessa de alma, se atravessa de sol. Como um trem de carga a linha, os trilhos: atravessa o sol. E a água tem grandes mãos de comboios que tem grandes mãos de ondas. Atravessa-se e nada mexe quando é tempo o Mar.
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Se todos os homens vissem o instante em que não estariam mais entre os vivos, e se percebessem o lugar do coração, teriam súbita entrega e entendimento, sem precisão de palavra alguma.
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Romance de Carlos Nejar

Minuta de Diego Mendes Sousa

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