quarta-feira, 7 de novembro de 2012

SEGUNDA HOMENAGEM A CLARICE LISPECTOR



Hoje é dia 14 de abril de 2005, 01h15min. O tempo só passa. Já entrada a madrugada um cão ladra na noite enorme, o cão enorme ladra, late rouco, qual bicho louco. E a noite é noite, porque o sol brinca do outro lado do mundo, cheio de sol. Por enquanto, por aqui na rua dos Flamboyants, número oitenta, é noite, porque a rua está escura, as ruas estão escuras e um cão vadio late rouco. 
Na noite. Que não é dia, porque o sol brinca do outro lado. Estamos condenados à noite, sendo que o sol brinca do outro lado. Depois o sol vem e todo o mundo acorda e correm para o nada, correm tanto que chega a noite (porque o sol foi brincar do outro lado) e então se pergunta, meu Deus, o que fiz eu do dia quotidiano dia, o que fiz de minha beleza que um dia tentei explicar em palavras? Ah! Não quero adormecer, porque, se adormeço, ouço logo o relincho de um potro selvagem, arfante, ofegante, com seus cascos raspando em alguma relva verde. Então Equus cavalga pela campina branca de luar, e assim esta imagem se repete há milênios, e até hoje não conhecemos os cavalos, nem seu Deus Equus, nem conhecemos nós que também há milênios apontamos nossa face na luz do sol, e pensamos que somos únicas cópias autênticas do universo. Qual o quê!


Ah, vem, ó meu amor que fatalmente dorme, pensando que a madrugada já é o começo de um dia que se repetirá, o hoje sem ser hoje acontecendo, como se nada tivessse acontecido. Ah, meu amor, um dia eu pedi tua mão, pois eu sentia falta dela, como da água da fonte que me faltou. Por isso é que corri pelas florestas intrincadas, colocando meus ouvidos na terra, à procura do barulho das invisíveis fontes que percorrem o seio da terra, que percorrem a grande boceta da terra, geradora de crianças inocentes, culpadas pelo fato de serem crianças, e serem crianças pelo fato de serem culpadas pelo pecado original, que ninguém sabe de que origem é, porque se soubéssemos, seríamos deuses, e a nós só nos foi dada como herança a grande dúvida do ser, onde nem sabemos se somos. E se somos? Pouco importa para Deus. Que é. E nem está aí com as crianças, e nem com o vento que tomba os campos de trigos, tomba os capins coloridos à beira das estradas. Não, meu amor, a nossa provação é o conhecimento do horror de sabermos que fomos há milênios, mas estamos estupefatos com o agora, o é, o é.





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